Apresentação
O presente texto tem como objetivo apresentar um projeto de restauração de uma
pintura de cavalete que se encontra no Museu das Armas, na cidade da Lapa-PR. A
pintura, que foi feita em 1967, é de autoria do artista plástico J.A.Koss e tem como
tema O Cerco da Lapa.
A pintura de Koss é um importante registro histórico e artístico para o Museu
das Armas e para a cidade da Lapa, sendo um dos poucos quadros que representa o
General Carneiro em combate contra as tropas federalistas. A obra, devido à passagem
do tempo e ao mal armazenamento da pintura antes de ser adquirida pelo museu, está
com o suporte e a camada pictórica deterioradas, sendo a restauração um procedimento
fundamental para manter a integridade física e estética dessa pintura.
Neste projeto, estão descritos os dados de identificação da obra, seguida de sua
análise formal, na qual é feita uma detalhada descrição da pintura; análise estilística,
onde há considerações sobre as técnicas e materiais utilizados pelo pintor;
contextualização histórica sobre a Revolução Federalista e o Cerco da Lapa, tema
representado na pintura; análise do estado de conservação, feita após exame
organoléptico e registros fotográficos; proposta de tratamento, onde se citam todos os
procedimentos de restauração que devem ser feitos na pintura; o cronograma de trabalho
e, por fim, o orçamento.
Importante ressaltar que a restauração dessa pintura parte do princípio de que
qualquer intervenção de restauro deve ter uma justificativa teórica e técnica que leve em
conta as particularidades de cada obra. Desde meados do século XX, o restauro passou a
ser encarado como atividade científica, partindo-se do princípio de que as intervenções
de restauração devem ser justificadas a partir de princípios teóricos. Um dos principais
teóricos que defendeu o “restauro crítico” foi o italiano Cesare Brandi, que iniciou suas
pesquisas de restauração na década de 1960. O autor, em seu livro Teoria da
Restauração afirma que “a restauração constitui o momento metodológico do
reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade
estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro”.
Dessa forma, para
Brandi a obra não se limita a simples objeto, sendo possuidora de duas instâncias: a histórica e a estética, que devem ser levadas em conta na escolha das intervenções de
restauro mais adequadas a cada obra. Nesse ponto de vista, a restauração teria a função
de “ lograr o restabelecimento da unidade do bem cultural, sempre que seja possível
alcançá-la sem cometer uma falsificação artística nem uma falsificação histórica e sem
apagar as marcas que são testemunhas do seu tempo de vida”2
.
Além disso, esses princípios teóricos também vão de encontro com as posturas
de preservação e conservação de bens culturais adotadas pelo IPHAN, tendo como
critérios técnicos, dentre outros, a mínima intervenção, a manutenção do substrato
histórico, a compatibilidade de técnicas e materias empregados e a reversibilidade dos
materiais.3 Dessa forma, as intervenções de restauro propostas para a pintura de J. A.
Koss são baseadas em princípios teóricos, embasados por conhecimentos
multidisciplinares, como a história da arte, a iconografia, a biologia e a química,
buscando recuperar a integridade física, estética e histórica da obra.
1. Dados de Identificação
Título da obra: O Cerco da Lapa
Autor: J.A. Koss
Técnica: Pintura a óleo sobre tela
Época: 1967
Origem: Lapa - PR
Procedência: Museu de Armas da Lapa
2. Histórico
2.1. Lapa – PR
Na região da Lapa, há indícios arqueológicos de antiga ocupação de povos
indígenas Guarani e Kaingang. Posteriormente, em 1728, a abertura do caminho do
Viamão, que ligava o sul do país até Sorocaba, no interior de São Paulo, facilitou o
povoamento da região. Assim, a origem da Lapa está relacionada com o tropeirismo,
surgido como “pouso” ou “invernada”, locais apropriados para a engorda do gado vindo
do Rio Grande do Sul antes de prosseguir viagem. O desenvolvimento do território foi
impulsionado, além das atividades de apoio aos tropeiros, pela exploração de erva-mate
e madeira. Em 1797, a região era denominada Freguesia de Santo Antônio da Lapa,
tendo sido elevada a categoria de Vila em 1806, passando a chamar-se Vila Nova do
Príncipe. Em 1872, o território foi emancipado como município, ganhando a
denominação atual de Lapa
2.2. Museu das Armas da Lapa
O Museu das Armas da Lapa fica localizado na Alameda David Carneiro, em
um prédio de 1868 que era a Câmera e Cadeia da cidade. No museu, que se encontra na
parte inferior do prédio, estão expostas as armas da Revelução Federalista e algumas
usadas pelo Exército Brasileiro durante o Império, como canhões, fuzis e balas. O
acervo do museu conta, também, com fotografias, textos e duas cópias de gravuras de
Debret quando esteve na região em 1827, além da pintura do artista plático J.A. Koss
retratando o episódio do Cerco da Lapa.
3. Análise Formal
O quadro representa uma cena de batalha envolvendo soldados federalistas e legalistas durante o Cerco da Lapa. A figura central que está em primeiro plano é a representação do General Carneiro, montado em um cavalo cinza, que está inclinado, com as patas dianteiras erguidas. A figura central é um homem de fisionomia serena, com a pele clara e a barba e bigode grisalhos. Veste uniforme e chapéu na cor azul com detalhes em amarelo. Está com o braço direito levantado na altura do peito, segurando uma espada, apontada contra um soldado que está do seu lado direito. Esse homem também está montado em um cavalo marrom inclinado, ambos em posição de perfil. Possui a pele clara, cabelos curtos e loiros e veste camisa e calça de tons acinzentados. Usa, também, um chapéu e uma espécie de chale, ambos cinzas, e segura na mão esquerda uma lança, que está apontada para o General Carneiro. Atrás desses dois personagens, em segundo plano, é representada uma figura masculina de pele escura, com uma faixa branca ao redor da testa, vestindo roupas azuladas e levando um trompete à boca. Na lateral direita da pintura há, em segundo plano, um soldado com uma arma na mão e um canhão sendo disparado por um combatente abaixado.
Já ao lado esquerdo da figura central há três personagens no primeiro plano, ambos com a mesma roupa: blusas brancas e calças azuis. Um deles é um homem de costas, em posição de batalha, com uma espada na mão direita, um chapéu preto e um lenço vermelho no pescoço, o que o identifica como maragato. Ao seu lado d ireito está um soldado de costas, prestes a cair no chão, ferido por uma arma de fogo disparada por um combatente que se encontra no segundo plano, de farda azul e com a arma na mão, apontada contra ele. O personagem ferido tem uma faixa branca na testa e segura uma arma na mão esquerda. Ao lado desse soldado, na extremidade direita da pintura, há o terceiro personagem, caído no chão juntamente com o seu cavalo. No segundo plano, também na lateral direita da imagem, avista-se uma trincheira sobre a qual repousa um soldado ferido.
O cenário ao fundo da pintura apresenta esboços de mais combatentes e seus cavalos, e de um vilarejo com pinheiros. No chão, que é um gramado de tons de verde claro e ocre, está em destaque, no centro da pintura, um tambor verde e amarelo.
4. Análise Estilística
Os materiais e a técnica da obra são pintura a óleo sobre tecido. Na composição da pintura, observa-se uma riqueza na distribuição das figuras e objetos e na utilização das cores. O pintor, sobretudo na representação do céu, deixou perceptível as marcas da pincelada, criando um efeito que dá dramaturgia e movimento à cena de batalha. Na paleta de cores do pintor ganham destaque as diversas tonalidades de azul, utilizadas no uniforme da figura principal e de outros soldados, no céu e para fazer efeitos de luz e sombra. Os variados tons de azul da pintura contrastam com as cores marrom e cinza dos cavalos e com o ocre das barricadas que estão parte inferior direita da pintura. Não é uma pintura que busca ser realista na representação dos combatentes e dos cavalos, tratando-se sobretudo de uma representação iconográfica de uma batalha do Cerco da Lapa. A visão desta pintura mostra que a principal preocupação do pintor é criar um significado simbólico envolvendo o conflito de dois grupos armados.
A pintura de J.A.Koss representando o Cerco da Lapa é significativa tanto por razões estéticas quanto históricas. Como já comentado, é uma das poucas obras que representa o General Carneiro em confronto contra os federalistas. É importante ressaltar que realizamos um levantamento histórico através de pesquisa bibliográfica no Dicionário das Artes Plásticas no Paraná5 e na internet e não encontramos registros sobre o pintor J. A. Koss. É necessário, portanto, pesquisa mais vasta para conhecer e divulgar a obra desse artista, de grande qualidade técnica.
5. Contextualização histórica sobre o “Cerco da Lapa”
O episódio conhecido como “Cerco da Lapa”, tema da pintura de J. A. Koss, ocorreu no contexto mais amplo da Revolução Federalista. A Revolução Federalista foi um conflito armado ocorrido no início da República brasileira, envolvendo diferentes visões de governo. Iniciou-se no Rio Grande do Sul em 1893, adquirindo posteriormente âmbito nacional, opondo federalistas, ou “maragatos” e florianistas, ou “pica-paus”. Os federalistas invadiram o Rio Grande do Sul após a vitória nas eleições para governador de Júlio Castilhos, por não concordarem com a centralização do poder por este defendida. Os “maragatos” eram um grupo composto por “políticos oriundos das mais variadas origens e tendências, agrupados porém em torno da oposição aos desígnios de mando pessoal de Júlio de Castilhos, e sob a bandeira das teses liberais parlamentares”, enquanto que os castilhistas ou florianistas estavam “reunidos em torno do republicanismo presidencialista de Júlio de Castilhos [...] e identificados com a sorte de Floriano e da própria República nascente”.
A revolução adquiriu âmbito nacional com a sublevação da Marinha na baía de Guanabara, em 1893, colocando o governo de Floriano Peixoto em risco. Após saírem vitoriosos no Rio Grande do Sul, os revolucionários ocuparam Santa Catarina e pretendiam invadir e ocupar o Paraná por três frentes: Paranaguá, Tijucas e Lapa. As duas primeiras cidades apresentaram resistência à invasão, mas foram ocupadas. Curitiba também foi ocupada pelos federalistas, mas sem resistência, tendo sido a sede do governo do estado transferida temporariamente para Castro.
A Lapa, sob o comando do General Gomes Carneiro, resistiu aos ataques dos federalistas, mesmo sem o apoio de Curitiba. A cidade ficou sitiada e sofreu bombardeamentos diários, tendo sido interceptadas as estradas de ferro e de rodagem e cortadas as comunicações telegráficas. No dia 4 de fevereiro de 1894, o General Carneiro foi ferido em combate, tendo falecido dois dias depois. Após 26 dias de combate intenso e diversas baixas de militares e civis, devido à fome e à falta de munição, houve a capitulação da Lapa.
Após a ocupação do Paraná, os federalistas pretendiam seguir rumo ao Rio de Janeiro, passando por São Paulo. Porém, o Marechal Floriano conseguiu organizar as tropas em São Paulo para contra-atacá-los, evitando, assim, o perigo de desembarque dos maragatos no Rio de Janeiro. Houve dispersão das tropas dos federalistas, que saíram do Paraná e foram abatidas pelos florianistas no Rio Grande do Sul.
A resistência no Paraná, e, sobretudo, na Lapa, durante o cerco da cidade, foram fundamentais para a vitória dos florianistas e o restabelecimento da ordem. Isso porque, nas palavras de Ruy Wachowicz, “proporcionou ao governo central do Marechal Floriano, na época o símbolo da República e da legalidade, o tempo suficiente para a aquisição no estrangeiro de uma esquadra, bem como para a organização, em São Paulo, das forças necessárias para deter e repelir o avanço federalista. A prolongada resistência na Lapa foi decisiva na concretização desses planos e impediu o ataque ao estado de São Paulo, o qual desta forma teve o sossego e o tempo necessário para mobilizar-se.”
6. Diagnóstico do Estado de Conservação
A tela encontra-se em estado de conservação ruim.
6.1. Suporte - Ondulações (deformação do plano);
- Perdas nas bordas, por oxidação de metais;
- Manchas causadas por umidade;
- Rasgos.
6.2. Camada Pictórica - Sujidade;
- Oxidação de verniz;
- Craquelamento e concheamento;
- Perdas da policromia;
- Ranhuras.
Sobre as deteriorações observadas, a camada pictórica apresenta sujidade aderida e acumulada generalizada. Há perdas pontualizadas de suporte nas bordas da tela, além da oxidação causada por elementos metálicos. A pintura, antes de ser colocada no museu, estava mal armazenada e sem o chassi, o que pode ter causado grande parte das perdas na camada pictórica.
7. Proposta de tratamento
7.1. Suporte
- Higienização mecânica;
- Pré-fixação / Faceamento das áreas de perda;
- Retirada da tela do chassi;
- Limpeza superficial do verso;
- Planificação localizada;
- Obturação das bordas;
- Reforço de bordas;
- Obturação dos rasgos;
- Colocação da tela no chassi.
7.2. Camada pictórica
- Higienização mecânica;
- Pré-fixação;
- Limpeza superficial química;
- Aplicação de camada de verniz de proteção;
- Nivelamento;
- Reintegração cromática;
- Aplicação de verniz final.
Para restaurar a pintura, em resumo, faremos a fixação da camada pictórica para a prevenção de desprendimentos de policromia. Depois, realizaremos a limpeza mecânica, que tem como objetivo remover as sujidades, como poeira e resíduos de cola presentes na obra. Faremos em seguida a retirada da tela do chassi e a obturação do suporte, que é feita para preencher os pequenos orifícios. Posteriormente, realizaremos o tratamento dos rasgos e das bordas, a fim de criar uma resistência no tecido para o procedimento posterior de estiramento da tela. O procedimento seguinte é o de limpeza química, antecedido pelos testes com solventes. O período de testes é fundamental para identificar a ação de cada um dos solventes, tendo-se em vista que produtos químicos podem eventualmente remover algum pigmento da camada pictórica. Os resultados devem ser significativos, porém não devem colocar em perigo a integridade física e estética da obra. Em seguida, realizaremos a aplicação de um verniz de proteção e posteirormente faremos o nivelamento, que tem a função de proteger a camada pictórica e é uma preparação prévia para a reintegração cromática, que visa a minorar as evidências da deterioração da obra e restabelecer a interpretação visual das formas e dos conteúdos. Todas as características originais da pintura serão mantidas, buscando-se preservar a sua integridade física e seu aspecto documental através de materiais e técnicas adequadas para cada situação.